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Ser Solidário

Olhar o próximo com afeto é uma via de mão dupla: ajuda quem precisa, e também transforma aquele que estende a mão.

“Do ponto de vista psicológico, o sentimento causado a um ser quando ele pratica o bem ao outro, quando causa o bem ao outro, muitas vezes é tão intenso, que gera uma sensação de autorrealização tão forte e cria um bem-estar, uma satisfação e realização que impulsionam outras facetas desse ser, e fazem com que ele se sinta potencializado e capaz de gerar outras ações positivas numa relação de causa e efeito”, explica a psicóloga Joseane Freitas, especialista em Desenvolvimento do Potencial Humano.

Segundo o livro “The Healing Power of Doing Good: The Health and Spiritual Benefits of Helping Others” (1992), do americano Allan Luks, ex-diretor do Instituto para o Avanço da Saúde de Nova Iorque, fazer o bem promove um bem-estar espiritual e contribui para melhorar a saúde física, mental e emocional. Mas de onde vem essa empatia que é tão natural para alguns? Para a sociologia, o conceito de solidariedade social diz respeito a alguém que se sente integrante de uma mesma comunidade e, por isso, sente-se interdependente. Etimologicamente, solidariedade, que tem origem no francês solidarité, significa um bom sentimento, uma união de simpatias, e faz referência à qualidade de solidário – quando um indivíduo se identifica com o sofrimento do outro.

“Na visão orgânica, o homem é parte de um organismo em si, e o convívio em sociedade é uma necessidade. Nesse contexto, faz sentido essa visão de fazer o bem e da importância de contribuir. Quando você está vivendo de forma harmônica com o meio onde você se encontra e age de forma contributiva, você percebe a sua relevância perante o organismo maior (sociedade). Isso gera uma sensação de satisfação e, a partir dela, surgem outros benefícios que, sem dúvida nenhuma, contribuem para a felicidade do ser”, justifica a psicóloga.

Não se sabe ao certo porque algumas pessoas se tornam adultos solidários, mas a infância é relevante neste aspecto. Este é o caso da professora, designer de interiores e atual primeira-dama de Niterói, Fernanda Sixel, que cresceu tendo como excelente exemplo de solidariedade a mãe, que chegou a abrigar em casa um jovem que sonhava em ser bailarino e custeou para ele a oportunidade de ir para Londres dançar. Hoje, paralelo à sua profissão, a primeira-dama é presidente do movimento que criou em 2013, o “Niterói Mais Humana”.

“Minha mãe sempre trabalhou, mas sempre teve espaço para uma atuação comunitária, que eu acho que todos deveriam ter. Tenho isso desde nova, muito inspirada por ela. Participei do movimento estudantil, de ações voluntárias, como dar aula para adultos. Sempre tive uma participação social não institucional. Quando o Rodrigo assumiu a prefeitura, surgiu essa vontade de atuar como primeira-dama, afinal, eu tinha condições de contribuir para que Niterói avançasse também”, revela.

Para Joseane Freitas, quando o contato com ações sociais está presente desde a formação do caráter do ser, o desenvolvimento da empatia, a compreensão do ponto de vista do outro e a noção da importância de se ter uma atitude não egoísta são estimuladas e o indivíduo compreende que o bem que ele faz ao outro é tão importante quanto o bem que faz a si, prosseguindo para a fase adulta com essa atitude já fomentada.

“Não é que, após adulto, a partir de algum fato, a pessoa não possa passar pelo descobrimento pessoal da importância de ações voluntárias e empáticas, porque pode acontecer em qualquer momento da vida. Contudo, evidentemente, quando isso é desenvolvido desde a infância torna-se algo muito natural”, explica a profissional.

A partir do movimento da “Niterói Mais Humana”, Sixel articula ações solidárias na cidade por meio de parcerias com instituições, iniciativas privadas e, inclusive, com o governo, e leva alegria, esperança e momentos únicos para quem precisa. Festas para crianças, desfiles de moda com modelos de comunidades, palestras de conscientização e “dias de princesa” para mulheres são algumas das ações que o movimento já fez desde a sua idealização. Mas uma delas, em especial, faz o coração da primeira-dama pulsar mais forte: as ações pró-adoção.

“É algo que mexe muito comigo. Essas ações transformam para sempre a história daquelas crianças, afinal, você dá uma família a elas, todas as condições para que elas mudem o seu destino. Para além da adoção, as pessoas podem ajudar de outras formas também, possibilitando, por exemplo, que a instituição ganhe mais visibilidade. Isso é muito importante, e como primeira-dama tenho a possibilidade de abrir portas. A ‘Niterói Mais Humana’ faz isso”, comenta.

Segundo Sixel, a solidariedade tem a ver com humanidade, e há um espaço muito grande para voluntariado no Brasil, mesmo sendo pouco incentivado culturalmente, e em meio às obrigações de um Estado que, na teoria, é provedor.

“O Estado tem que prover, é evidente, mas ele não vai abrir uma casa de festas para fazer uma festa para crianças como nós fizemos em uma ação. O Estado pode ser atuante, vai prover escola, outras ações, mas sempre há espaço para o terceiro setor. Esse espaço do voluntariado, de forma geral, não trabalhamos com as nossas crianças, não está na nossa formação cultural. Nós precisamos olhar para o que o outro sente com um olhar cuidadoso, isso é humanidade, ser humano, na raiz do sentido”, comenta.

As áreas nas quais uma pessoa pode contribuir são múltiplas e estendem-se para diversos nichos, incluindo moda, música e arte. O artista plástico niteroiense Rodrigo Pedroza, de 48 anos, encontrou no Remanso Fraterno – um espaço de promoção social e educacional destinado a jovens em situação de vulnerabilidade ou risco social – um lugar para doar os seus conhecimentos nas suas manhãs de quarta. Localizada em Várzea das Moças, cerca de 25km do Centro de Niterói, a instituição, mantida pela Sociedade Espírita Fraternidade (SEF), oferece dentista, psicólogo e possui turmas até o quinto ano. Há dois anos, a partir da necessidade de resgatar as crianças que já saíram da escola por meio de atividades extracurriculares, Pedroza começou a dar aulas e ensinar a 15 jovens por ano toda a técnica da escultura, com matéria-prima e ferramentas oferecidas por ele ou pela escola.

“Lá no Remanso, na realidade, o que ensino é muito pouco – o que eu ganho de retorno, carinho, afeto e companheirismo, é muito maior. Nós viramos uma família! Todas às quartas, às 7h, pego um ônibus, caminho 25 minutos em uma área quase rural, e depois em uma área de mata fechada. A vontade de ajudar é muito grande”, comenta.

Neste trabalho de doação e troca, o artista se emociona com as mudanças positivas que o contato com a arte promove na vida dos jovens, mesmo em meio a um cenário desfavorável no qual estão inseridos. Certa vez, dois alunos revelaram em sala de aula o desejo de fazer esculturas com a temática de arma, surpreendendo o professor.

“Nós não temos noção do que a criança que está do nosso lado em um momento lúdico passa. Você se surpreende e pensa: ‘Caramba, esse é o universo dela’. Além disso, às vezes, no início do curso, rola uma certa rebeldia e repulsa de alguns alunos. Mas, no fim do ano, você os vê com um imenso carinho pela obra que criaram. Esse tipo de retorno é o que encanta. Não consigo imaginar minha vida sem essa troca. Depois do primeiro passo, isso incorpora em você”, revela.

Outra niteroiense acredita no poder de passar o seu conhecimento artístico para a frente: a professora de música e integrante do grupo Música Antiga da UFF, Lenora Mendes (56). Atualmente a musicista dá aulas no espaço cultural da comunidade da Grota, em Niterói, para jovens de diferentes idades. A iniciativa começou por volta de 1995, quando sua sogra, Dona Otavia Paes Selles, chamou o seu marido, Marcio Paes Selles, para dar aula de violino a crianças entre 11 e 13 anos. Três anos depois, a Dona Otavia faleceu e Lenora começou a auxiliar seu companheiro dando aulas de flauta doce. Com o tempo, o projeto foi crescendo e o casal solidário começou a receber ajuda de outras pessoas da cidade e de outros voluntários, possibilitando que, em 2002, a ONG fosse formalizada e o trabalho na Grota tivesse continuidade. Quinze anos depois, o projeto recebe o auxílio anual de 100 contribuintes e mensal de cerca de 20.

“É muito gratificante poder compartilhar o seu conhecimento, aquilo que você adquiriu por ter chances na vida com pessoas que não tiveram. A cada ano, recebemos mais crianças e jovens; muitos já são até formados e nos ajudam. Se todo o mundo compartilhar um pouquinho, acredito que nosso País, cidade e mundo serão melhores. Essas crianças só precisam de uma chance, que elas agarram com unhas e dentes quando encontram uma”, incentiva.

Foi isso que uma jovem modelo de Rio Bonito, de 17 anos, fez: mesmo nova, agarrou as oportunidades que a vida foi apresentando para transformar a sua realidade. Aos seis anos, os pais de Ana Beatriz Freitas se separaram e ela foi morar com a mãe e os três irmãos em Itaboraí. Quando a mãe encontrou um novo amor, mudaram-se para uma comunidade. A rotina da jovem era ir à escola, voltar para casa e cuidar dos irmãos enquanto a mãe trabalhava. Muitas vezes, nem tinham o que comer. Surpreendentemente, uma vontade muito grande de ser modelo surgiu na vida da menina de cabelos cacheados, mas o seu cenário não era muito favorável para que este sonho se tornasse realidade. Bia, como a chamavam, chegou a fazer curso de modelo por alguns meses, mas a mãe não conseguiu arcar com os custos. Desesperada, foi até um diretor de escola de modelo contar a sua situação. Sensibilizado, ele não permitiu que a jovem abandonasse o sonho de ser modelo e fez o possível para que isso não acontecesse.

“Ele é um pai para mim. Conversou com a minha mãe e disse a ela que acreditava em mim e que eu não precisava mais pagar o curso. Fiquei muito feliz. Foi um chororô!”, relembra.

Desde então, a vida de Bia se transformou. O produtor de moda Will Araujo e a maquiadora Karina Correia, esposa de Moisés, produziram um book dela, e, no fim do ano passado, quando Moisés a levou para São Paulo, a modelo fez sucesso e foi aprovada em sua atual agência. Depois de apenas um mês na capital, passou em um casting na Alemanha. Agora, Samya, nome que recebera para marcar sua nova história, está em Barcelona, na Espanha, e muito animada e esperançosa com o que o futuro ainda lhe reserva.

“Hoje vejo que tudo é possível. Estou muito feliz! Antes eu era apenas uma menina que ia para a escola e na volta para casa tomava conta dos irmãos. Depois que essas pessoas me ajudaram, tudo começou a acontecer. Hoje, faço o que eu amo e minha realidade é muito diferente. Está sendo tudo o que eu sempre esperei! Agradeço muito a todos que me ajudaram”, desabafa a jovem, que apareceu na vida da artista e maquiadora Karina Correia (30) aos 14 anos, como indicação de outra modelo. Na época, Karina percebeu o potencial e a dedicação que Samya tinha dentro de si disponíveis para realizar seu sonho.

“Ela era nova e já tinha uma vontade enorme de vencer na vida. Nós fizemos o possível para ajudá-la. Vemos ela como nossa filha! Ficamos muito felizes de ver que as coisas estão acontecendo na carreira dela e que ela está começando a transformar sua realidade”, opina a maquiadora.

Também inserido no mundo da moda, o estilista Almir França (57), que cresceu no Norte do Rio em uma família muito pobre, encontrou na sua própria realidade a motivação para fazer de seu ofício algo para além de sua sobrevivência, que pudesse também ajudar as pessoas ao seu redor. Formado em Psicologia e em Belas Artes, o carioca encontrou-se em meio à produção de moda com o reaproveitamento de materiais e levou este projeto para as comunidades. Nascia o projeto Ecomoda.

“Nós trabalhamos a moda no sentimento de ressocializar, de empoderamento do cidadão. Dar aula para uma mulher que mal sabe escrever e fazer contas não é só uma questão de moda: é também uma questão de higiene, saúde, postura, da fala e do questionamento. Enquanto você está ensinando um corte, uma aluna está contando a violência doméstica que sofreu ou que viu a vizinha sofrer, e aí você se pergunta em que momento vai poder falar de Chanel, de Yves Saint Laurent. Isso faz você repensar muita coisa”, explica.

O projeto também está em Niterói: na Escola Estadual Benjamin Constant (no Barreto), no MACquinho, no Morro do Estado e em outras duas unidades.

“Não consigo parar. Não gosto muito do termo ajudar, porque parece que nos colocamos em um espaço de poder e em um espaço que é melhor. Lá eu acho que nós temos trocado muita coisa! Socialmente, as tricoteiras estão sendo beneficiadas, mas, para mim, é uma relação muito mais horizontal”, finaliza Almir.

Matéria escrita por Mariana Chamon, publicada na Revista OFLU, do Jornal O Fluminense.

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